Frankenstein. Ornitorrinco. Jabuti. Colcha de retalhos. A lista de codinomes conferidos à polêmica Medida Provisória 517/2010, aprovada há pouco no Plenário do Senado depois de quase 6 horas de debates, é proporcional às críticas recebidas por senadores – da base e da oposição – e à quantidade de temas reunidos na matéria – 19 ao todo, a promover alterações em 17 leis diferentes e um decreto-lei. Enviado ao Congresso no último dia do governo Lula, em 31 de dezembro passado, o texto original da MP chegou para a apreciação dos deputados com 22 artigos, mas ganhou outros 34 e passou a tramitar como Projeto de Lei de Conversão 13/2011. Foram 43 votos favoráveis contra 17, e 3 abstenções.
Relatada pelo líder do governo, Romero Jucá (PMDB-AP), a medida perderia validade caso não tivesse sua tramitação validada ainda hoje (quarta, 1º). Como foi modificada na Câmara, segue agora para sanção presidencial. “É uma medida provisória importante para o país, para a continuidade de programas sociais no campo, no tocante à energia elétrica”, declarou Jucá, exortando os senadores a votar favoravelmente.
Um dos principais pontos de discórdia da MP foi a prorrogação, por mais 25 anos, da chamada Reserva Global de Reversão (RGR) – encargo, que embutido na cobrança da conta de luz, compõe fundo direcionado a projetos de universalização dos serviços de energia elétrica. Criada em 1957, a RGR teve vigência até 31 de dezembro de 2010 – mas, com os efeitos imediatos da MP, assinada no mesmo dia, o mecanismo foi automaticamente revalidado.

Para o senador José Agripino (DEM-RN), a prorrogação da RGR é uma espécie de reedição da CPMF, o chamado “imposto sobre o cheque” cuja prorrogação foi derrubada no próprio Senado, em 2008. “Nós estamos diante de uma ‘CPMFzinha’ disfarçada, cavilosa, guardada no meio de 50 temas que inquietam o governo”, discursou Agripino, apontando os custos que seriam repassados ao contribuinte. “Bonito nome, nefasto efeito. (…) Sabe quando significa isso para o bolso do contribuinte? Em 25 anos, R$ 35 bilhões”, acrescentou.

Depois de um debate que ocupou toda a tarde e avançou pela noite desta quarta-feira (1º), em sessão deliberativa marcada por discursos inflamados contra o atual rito de MPs, os senadores enfim votaram o parecer elaborado pelo deputado João Carlos Bacelar (PR-BA). Entre os demais temas reunidos no relatório, está a concessão de incentivos fiscais a vários setores da economia, mas a MP se tornou polêmica por incentivar obras de infraestrutura para geração de energia nuclear.

Segundo a proposta, fica instituído o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento de Usinas Nucleares (Renuclear), segundo o qual empresas poderão adquirir equipamentos e materiais sem o pagamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Importação (II). “Nós estamos votando incentivos para a criação de usinas nucleares, no momento em que o mundo discute a retração dessas usinas”, protestou o líder do DEM no Senado, Demóstenes Torres (GO), antes da votação de requerimentos diversos apresentados pela oposição – todos rejeitados com os votos da maioria governista. Ele diz que vai ao Supremo Tribunal Federal contestar a aprovação da MP.

A proposição também dispõe sobre medidas tributárias referentes ao Plano Nacional de Banda Larga, bem como modifica a legislação relativa à isenção do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM). Também estão entre as disposições do texto a extinção do Fundo Nacional de Desenvolvimento e a concessão de bolsa-permanência para custeios educacionais de beneficiários do Programa Universidade para Todos (Prouni).

Mais protestos

O suposto excesso na edição e o atual rito de medidas provisórias voltou a provocar protestos ferrenhos dos senadores – em reação que já resultou no arquivamento de duas MPs neste ano. O Cristovam Buarque (PDT-DF) chegou a mencionar a abolição da escravatura entre as deliberações que teriam servido para “afirmar” as prerrogativas do Congresso – situação bem diferente da que ele mencionou em seu discurso de objeção à matéria.

Para Cristovam, ao não proferir “um não rotundo” ao que é proposto pelo governo, os senadores estão a “baixar a cabeça”, desmoralizando-se o Congresso e a democracia. “Nós não podemos aceitar uma medida provisória que chega aqui com aberrações completas do ponto de vista da forma como é apresentada, com um número imenso de propostas diferentes, com contrabando incluído dentro da medida provisória. Esta MP chega aqui como uma aberração, mas chega também como uma violentação no equilíbrio dos três poderes”, lamentou o senador.

Já o senador Cyro Miranda (PSDB-GO) criticou o “descalabro” de tantos temas na mesma matéria e reclamou do prazo quase inexistente para uma análise mais aprofundada da MP, que chegou ao Senado em 26 de março. “[A MP] transformou-se numa verdadeira colcha de retalhos, ou no que nos bastidores do Congresso já se convencionou denominar jocosamente de ‘MP Frankenstein’. A atividade legislativa se está tornando, com isso, uma verdadeira balbúrdia, ao arrepio da lei”, reclamou o tucano, referindo-se à Lei Complementar 95/1998, que dispõe sobre a elaboração e a consolidação das leis – o artigo 7º determina que “a lei não conterá matéria estranha ao seu objeto ou a este não vinculado por afinidade, permanência ou conexão”.

“É exatamente o que ela [a MP] é, um monstro gerado na burocracia do Executivo e alimentado pela passividade das duas Casas do Congresso Nacional, sobretudo o Senado da República”, bradou o dissidente peemedebista da base aliada, Jarbas Vasconcelos (PE), lembrando que a “colcha de retalhos” foi assinada pelo então presidente Lula. “Faz vergonha, cada dia nos entristece mais a conduta vergonhosa com que tem atuado aqui a maioria governista.”

Já o líder do PSDB no Senado, Alvaro Dias (PR), disse que a medida deixa de atender aos interesses das populações carentes para beneficiar “grupos organizados poderosos”. “Por mais apelidos que possamos criar para uma medida provisória dessa natureza, sempre faltará inspiração”, resumiu o tucano, para quem a matéria “é uma espécie de feira livre, uma zona franca, um balcão de negócios e de favorecimentos”. Do Congresso em Foco

Compartilhe