G1

Vanessa Vasconcelos, funcionária da boate Kiss até dezembro de 2012, disse à Polícia Civil, em depoimento prestado nesta quarta-feira (30), que Elissandro Spohr, o Kiko, um dos sócios da casa noturna, mandava retirar os extintores de incêndio das paredes por questão estética. Ela trabalhou por dois anos no local e perdeu a irmã – que trabalhava como recepcionista – na tragédia. Questionado pelo G1, o advogado de defesa de Spohr, Jader Marques, negou a informação.

Ele achava feios os extintores. Mandava tirar. Só colocava de volta quando ia ter inspeção ou quando ficava com receio que iriam inspecionar”
Vanessa Vasconcelos,
ex-funcionária da boate Kiss

“Ele achava feios os extintores. Mandava tirar. Só colocava de volta quando ia ter inspeção ou quando ficava com receio que iriam inspecionar”, afirmou ao G1, depois de deixar ao lado do pai a delegacia. Ela contou ainda que, após uma sessão de fotos da boate, ouviu do patrão: “Como estes extintores ficam feios na parede”.

O advogado rechaçou a declaração. “Não é verdade, não me parece razoável essa informação. Estou estabelecendo o que me parece razoável pelo que falei com ele. O local de maior exposição era o palco e ali tinha extintor”, disse Jader Marques após a entrevista coletiva que concedeu sobre o caso, na manhã desta quarta.

O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, deixou 235 mortos na madrugada do último domingo (27). O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco. De acordo com relatos de sobreviventes e testemunhas, e das informações divulgadas até o momento por investigadores, é possível afirmar que:

– O vocalista segurou um artefato pirotécnico.
– Era comum a utilização de fogos pelo grupo.
– A banda comprou um sinalizador proibido.
– O extintor de incêndio não funcionou.
– Havia mais público do que a capacidade.
– A boate tinha apenas um acesso, para a rua.
– O alvará dado pelos Bombeiros estava vencido.
– Mais de 180 corpos foram retirados dos banheiros.
– 90% das vítimas tiveram asfixia mecânica.
Equipamentos de gravação estavam no conserto.

(Veja o que já se sabe e as perguntas a responder)

Reformas eram frequentes
Vanessa trabalhou na boate Kiss entre dezembro de 2010 e dezembro de 2012, era uma das gerentes e deixou a casa noturna poucos dias antes da tragédia. Além de depor, ela foi até a delegacia também para tentar reconhecer a bolsa da irmã, que morreu na tragédia.

A ex-funcionária contou que Elissandro Spohr fazia seguidamente reformas internas no local, como mudanças na posição do caixa, nivelamento no teto e troca de lugar do palco. “Era sempre na esquerda [o palco]. Depois ele passou para a direita, no outro lado. Depois nivelou a boate. A casa tinha uma rampa para um lado. Ele mandou colocar madeira e deixar tudo igual. Ele fazia tudo que é tipo de mudanças lá dentro”, disse a ex-gerente.

Outra mudança teria sido a troca de ventiladores. Havia grandes ventiladores abertos no teto, que faziam muito barulho, segundo uma moradora do prédio ao lado da casa noturna que pediu para não ser identificada. Recentemente, após o abaixo-assinado de 87 vizinhos, parte dos aparelhos teria sido retirada. O proprietário teria colocado mais ventiladores de teto internos, porque queria economizar com ar-condicionado, segundo a ex-funcionária.

Um primo de Spohr seria o responsável pelas obras, de acordo com Vanessa. “Ele não contratava engenheiro. O primo do Kiko fazia as reformas, de chinelo de dedo e bermuda, sem nenhum equipamento de segurança”.

A jovem disse estar processando Spohr por direitos trabalhistas, pois na Carteira de Trabalho seus horários de trabalho e salário não seriam compatíveis com a realidade.

“Quando houve o incêndio, fui lá. Queria a minha irmã. Ela morreu lá dentro tentando ajudar as pessoas a saírem. Conhecíamos aquele lugar no escuro e ela viu as pessoas correndo para o banheiro e tentou avisá-los de que a saída era para o outro lado. Acabou morrendo”.

Prisões
Quatro pessoa foram presas na segunda por conta do incêndio: o dono da boate, Elissandro Calegaro Spohr; o sócio, Mauro Hofffmann; o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Santos; e um funcionário do grupo, Luciano Augusto Bonilha Leão, responsável pela segurança e outros serviços.

Investigação
O delegado Marcos Vianna, responsável pelo inquérito do incêndio na boate Kiss, disse ao G1 na terça-feira (29) que uma soma de quatro fatores contribuiu para a tragédia ter acabado com tantos mortos: 1) o fato de a boate ter só uma saída e a porta ser de tamanho reduzido; 2) o uso de um artefato sinalizador em um local fechado; 3) o excesso de pessoas no local; e 4) a espuma usada no revestimento, que pode não ter sido a mais indicada e ter influenciado na formação de gás tóxico.

O delegado regional de Santa Maria, Marcelo Arigony, afirmou também na terça que a Polícia Civil tem “diversos indicativos” de que a boate estava irregular e não podia estar funcionando. “Se a boate estivesse regular, não teria havido quase 240 mortes”, disse em entrevista. “Mas isso ainda é preliminar e precisa ser corroborado pelos depoimentos das testemunhas e os laudos periciais”, completou.

Arigony disse ainda que a banda Gurizada Fandangueira utilizou um sinalizador mais barato, próprio para ambientes abertos e que não deveria ser usado durante show em local fechado. “O sinalizador para ambiente aberto custava R$ 2,50 a unidade e, para ambiente fechado, R$ 70. Eles sabiam disso, usaram este modelo para economizar. Usaram o equipamento para ambiente aberto porque era mais barato”, disse o delegado.

O vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo Santos, admitiu em seu depoimento à Polícia Civil que segurou um sinalizador aceso durante o show, de acordo com o promotor criminal Joel Oliveira Dutra. O músico disse, no entanto, que não acredita que as faíscas do artefato tenham provocado o incêndio. Ele afirmou que já havia manipulado esse tipo de artefato por diversas vezes em outras apresentações.

Responsabilidades
A boate Kiss desrespeitou pelo menos dois artigos de leis estadual e municipal no que diz respeito ao plano de prevenção contra incêndio. Tanto a legislação do Rio Grande do Sul quanto a de Santa Maria listam exigências não cumpridas pela casa noturna, como a instalação de uma segunda porta, de emergência. A boate situada na Rua dos Andradas tinha apenas uma, por onde o público entrava e saía. Outra medida que não foi cumprida na estrutura da boate diz respeito ao tipo de revestimento utilizado como isolamento acústico.

A Brigada Militar informou nesta quarta que a boate não estava em desacordo com normas de prevenção contra incêndios em relação ao número de saídas. Segundo interpretação da lei, o local atendia as normas ao possuir duas saídas no salão principal. Mas as portas, no entanto, não davam para a rua, e sim para um hall. Este sim dava para a rua através de uma só porta. “Foi um ato possível que o engenheiro conseguiu colocar”, disse o tenente coronel Adriano Krukoski, comandante do Corpo de Bombeiros de Porto Alegre.

Jader Marques, advogado de Elissandro Spohr, um dos sócios da boate, disse que a casa noturna estava em “plenas condições” de receber a festa. Ele falou sobre documentação da casa, segurança, lotação, e disse que a banda Gurizada Fandangueira não avisou que usaria sinalizadores naquela noite. O advogado ainda afirmou que o Ministério Público vistoriou o local “diversas vezes”.

A Prefeitura de Santa Maria se eximiu de responsabilidade pelo incêndio e entregou alvará para a polícia que mostra data de validade de inspeção para prevenção de incêndio, feita pelo Corpo de Bombeiros. A prefeitura afirma que a sua responsabilidade era apenas sobre o alvará de localização, que é válido com a vistoria do ano corrente. O documento informa que a vistoria foi feita em 19 de abril de 2012.

O chefe do Estado Maior do 4º Comando Regional do Corpo de Bombeiros, major Gerson Pereira, disse na quarta que a casa noturna tinha todas as exigências estabelecidas pela lei vigente no Brasil. “Quem falhou, que assuma a sua responsabilidade. Nós fizemos tudo o que estava ao nosso alcance e não vou entrar em jogo de empurra-empurra”, afirmou.

O Ministério Público do Rio Grande do Sul abriu um inquérito civil na terça para investigar a possibilidade de improbidade administrativa por parte de integrantes da Prefeitura de Santa Maria, do Corpo de Bombeiros e de outros órgãos públicos por terem permitido que a boate Kiss continuasse funcionando mesmo com as licenças de operação e sanitária vencidas.

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