A ordem é não deixar transparecer à opinião pública e evitar qualquer tipo de prejuízo à governabilidade. Mas passados mais de oito meses desde o início do novo governo Dilma Rousseff, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está longe de “desencarnar” do poder, como havia prometido. Transformado em uma espécie de conselheiro supremo de Dilma, Lula dá palpites
corriqueiros na administração federal, ajuda a desenhar cuidadosamente a linha de ação da gestão e, principalmente em momentos de crise, já chegou ao ponto de interferir diretamente na condução do governo e assumir a dianteira na tomada de decisões.

Aos poucos, o que começou como uma consulta natural para viabilizar a transição entre as duas administrações se transformou em rotina de trabalho de Dilma. A presidenta conversa pelo menos uma vez por semana com Lula, especificamente para tratar de questões do governo. Pessoalmente, os encontros acontecem no mínimo a cada 15 dias. Em tempos de crise, a frequência é bem
maior, dizem petistas com trânsito no Planalto.

Foto: AE

Segundo aliados, presidenta toma iniciativa de consultar antecessor, mas já ficou incomodada em algumas ocasiões

Aliados garantem que, na maioria das vezes, parte de Dilma a iniciativa de consultar Lula. Mas as sucessivas intervenções do ex-presidente já deixaram a presidenta incomodada a ponto de fazer chegar o recado ao antecessor.Para amenizar o problema, foi criada uma espécie de time de “bombeiros”, que entra em campo toda vez que o ex-presidente avança o sinal e exagera na dose. No
Planalto, a tarefa fica a cargo do ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho. Em São Paulo, quem assume a função é o ex-ministro Luiz Dulci, que hoje integra a equipe do instituto criado pelo ex-presidente.

“Sempre que Lula passa da conta, essa equipe logo
começa a preparar uma bateria de viagens ao exterior, para tirá-lo de perto. Até
porque às vezes ele exagera na dose mesmo”, conta um líder petista que já
presenciou conversas entre o ex-presidente e sua sucessora. Outra linha de ação
foi deixar Lula mergulhado nos preparativos da eleição em São Paulo, onde o
ex-presidente trabalha para emplacar o nome do ministro da Educação, Fernando Haddad.

O auge da dificuldade no relacionamento entre Dilma e Lula ocorreu durante a
crise que levou à demissão do então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci.
Lula desembarcou em Brasília em 24 de maio. Articulou com estardalhaço a
permanência do então ministro no cargo e fragilizou ainda mais a posição de
Dilma, sobre quem já pesavam as acusações da oposição de ser uma espécie de
marionete do ex-presidente.

O problema maior não foi tanto a visita, mas sim o
fato de Lula ter se movimentado abertamente em Brasília para tentar manter
Palocci no cargo. Como parte do trabalho, o ex-presidente deixou claro para a
base aliada que estava lá para atuar como bombeiro da crise e até posou para fotos ao almoçar com senadores do PT na
casa do ministro Paulo Bernardo e sua esposa Gleisi Hoffmann, que na época ainda
integrava a bancada parlamentar do partido.

“Aquilo foi ao mesmo tempo um grande erro e um divisor de águas. Dilma não
gostou da forma como Lula apareceu em Brasília e isso chegou ao ouvido dele, que
assimilou o recado”, disse um integrante do primeiro escalão do governo.

Dilma, entretanto, demonstrou o desconforto de maneira sutil. Os únicos
convidados que faltaram ao encontro na casa de Gleisi e Bernardo foram Delcídio
Amaral (PT-MS) e Walter Pinheiro (PT-BA). Dias depois, a presidenta teceu
elogios a ambos.

O
almoço em Brasília foi ao mesmo tempo um grande erro e um divisor de águas.
Dilma não gostou da forma como Lula apareceu em Brasília e isso chegou ao ouvido
dele, que assimilou o recado

Recuo

A tensão provocada pelo episódio Palocci levou Lula
a agir de forma bem mais discreta. Nos meses seguintes, suas visitas a Brasília
passaram a se dar longe dos holofotes. Foi assim na época em que Dilma ordenou a
faxina na Esplanada dos Ministérios, inaugurada pela crise que provocou a demissão do ex-ministro dos Transportes Alfredo
Nascimento
.

No início, Lula manteve-se distante. Mas no momento
em que a faxina começou a se alastrar por outros
ministérios, como Agricultura e Turismo, o ex-presidente voltou a procurar Dilma
para colocar um freio nas demissões. “Você não pode governar de costas para a
sociedade, mas também não pode governar de costas para os partidos”, disse Lula
a Dilma, de acordo com um interlocutor.

A conversa com Lula ocorreu na primeira semana de agosto. Na semana seguinte,
Dilma comandou uma bateria de encontros com representantes de partidos aliados.
No dia 22, a estratégia foi coroada com a declaração de que estava tão
satisfeita com o resultado das conversas que passaria a ter encontros
“rotineiros” com a base. “O Lula sabe que exagerou no caso do Palocci e tomou
muito cuidado para não repetir o erro”, conta um petista próximo ao
ex-presidente.

Poucos dias antes do sorteio das chaves da Copa do Mundo de 2014, no Rio de
Janeiro, outro caso sensível marcou a relação entre Lula e a presidenta. No dia
30 de julho, Gilberto Carvalho se viu às voltas com outra saia-justa: Lula havia
sido convidado pelo presidente da CBF, Ricardo Teixeira, a participar do evento
e consultou o ministro sobre a conveniência de comparecer ao sorteio, do qual
Dilma também participaria.

“Só vou se a Dilma achar que devo ir”, disse Lula a Carvalho. O ministro
deixou claro que era contra a ida do ex-presidente ao evento. A simples presença
de Lula seria suficiente para ofuscar todas as demais autoridades presentes.
Mesmo assim, Carvalho levou o assunto à presidenta que respondeu com expressão
leve e despreocupada: “É claro que ele pode ir. O Lula adora futebol”. O
ex-presidente acabou não indo por causa de fortes dores no ouvido provocadas
pelo excesso de viagens aéreas.

O sorteio também serviu para marcar as diferenças
entre Dilma e Lula no trato à CBF. A presidenta ficou extremamente irritada
quando soube que o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, determinou a pedido
da confederação o fechamento do espaço aéreo do Rio sem consultá-la. Este teria
sido um dos motivos que ajudaram a azedar o clima entre Dilma e o ministro, herdado
do governo Lula.

 

Foto: AE

Incomodo no Planalto ficou evidente após Lula posar para fotos em almoço com
senadores

 

Esbarrões

Os esbarrões de Lula em outros integrantes do
governo também já mobilizaram auxiliares da presidenta. Algumas semanas após o
sorteio da Copa, o deputado Henrique Fontana (PT-RS), relator do projeto de
reforma política na Câmara, organizou um evento sobre o tema no Rio de Janeiro
com a participação do vice-presidente, Michel Temer (PMDB), políticos e estudiosos.

A reforma política é a principal bandeira de Lula no âmbito interno desde que
deixou o governo. O ex-presidente já fez diversas reuniões com acadêmicos,
líderes partidários e parlamentares para tratar do assunto. Fontana achou por
bem convidar Lula mas, sem querer, causou uma saia-justa.

A participação de Lula em um seminário que também contava com a presença do
vice-presidente poderia ser interpretada como interferência indevida. Além
disso, havia o temor de que Lula ofuscasse Temer. Carvalho, mais uma vez
recorreu a Dilma. Desta vez a própria presidenta viu risco de atrito. A solução
encontrada foi cancelar o evento.

Na abertura do 4º Congresso Nacional do PT, organizado em Brasília no último
fim de semana, o próprio Lula explicitou aos 1.350 delegados do partido a
situação desconfortável em que se encontra. “Acho que pela primeira vez na vida
chego aqui e não sei o que falar para vocês. Primeiro porque não posso me meter
muito nas coisas do partido porque o presidente (Rui Falcão) já falou. Segundo
porque não posso me meter muito nas coisas do governo porque a presidenta vai
falar”, disse ele.

Assessores próximos de Lula e Dilma consideram que, apesar dos esbarrões, a
relação entre o ex e a presidenta está longe de ser ruim. “É um processo natural
de acomodação. Cada um vai percebendo qual é o seu espaço e aprendendo a se
movimentar. Isso é inédito no Brasil. Nunca, na democracia, um presidente havia
elegido o sucessor”, disse um ministro.

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