Ele conhece como poucos a obra de Guimarães Rosa, inclusive desbravou as Gerais percorrendo todo o caminho do Grande Sertão Veredas. Encenou peças clássicas da dramaturgia brasileira, como Morte e vida severina, O pagador de promessas e Eles não usam black-tie e chegou a trabalhar ao lado de um dos papas das artes cênicas, Augusto Boal. Além disso, alfabetizou trabalhadores rurais no interior da Bahia, utilizando o método do mestre Paulo Freire e se prepara agora para concluir um trabalho inédito sobre os primeiros autores negros do país. É um trabalho interessante e se torna ainda mais peculiar por um detalhe: o protagonista de todos esses feitos é um norte-americano que vive no estado de Iowa, no Centro-Oeste dos Estados Unidos. Entretanto, é um apaixonado pelo Brasil. Robert Krueger, 67 anos, esteve recentemente em Brasília e recebeu o Correio para falar dessa pesquisa sobre narrativas e textos de escravos brasileiros.
Todo o trabalho começou há 28 anos quando Robert, que é um brasilianista (estrangeiro especialista em Brasil) e professor de português e espanhol em universidades norte-americanas, resolveu desenvolver uma coletânea com a mulher, Alida Bakuzis, também uma especialista em língua hispânica e lusa, reunindo narrativas e textos de escravos brasileiros. Entre os destaques estão documentos sobre uma santa negra e um outro datado de 1558 abordando a castidade de uma índia também escravizada.
Ele lembra que já foram publicados escritos nesse sentido no Brasil, mas textos dispersos encontrados por historiadores e pesquisadores. “Um historiador aqui, outro ali conseguiram alguma coisa nesse sentido e, na maioria das vezes, publicaram só fragmentos. Nós temos a única coletânea desse assunto e ainda temos a intenção de fazer uma antologia bilíngue. Alguns documentos antigos foram realmente escritos pelos escravos, uma raridade, já que a maioria era analfabeta, outros são testamentos ou até testemunhos orais, inclusive, depoimentos colhidos, muitas vezes, sob tortura”, revela.

Racismo

A coletânea vai se chamar Milhões de vozes, umas páginas preciosas: As narrativas e textos dos escravos brasileiros e deve ser lançada ainda este ano. Robert conta que sempre lutou contra o racismo nos Estados Unidos, e que só no seu país existem cerca de 6 mil narrativas escravas. Dessa forma, sentia falta desse tipo de literatura no Brasil, até porque foi uma das nações que mais escravizaram no mundo. “O Brasil teve escravos africanos como nenhum outro país. Percorremos arquivos públicos de vários lugares, como em Lisboa (na Torre do Tombo), no Porto, em Évora, nos Estados Unidos, na Inglaterra e em várias cidades do Brasil, conseguimos documentos raríssimos. A gente transcreve e interpreta o documento porque, muitas vezes, alguns estão até ilegíveis”, comenta o pesquisador.
Ao todo, Robert e Alida conseguiram reunir aproximadamente 370 documentos, uma quantidade considerada pequena em comparação à de textos escravistas publicados nos Estados Unidos. Para o brasilianista, esse número abaixo do esperado se deve a dois motivos: ao fato de a abolição no Brasil ter sido tardia e devido ao catolicismo, que era a religião predominante entre os negros por aqui, não exigir que seus fiéis fossem alfabetizados. “Nos EUA, o movimento abolicionista foi liderado por protestantes. No protestantismo, a autoridade é um livro, a Bíblia. Já no catolicismo, não. Para ser um bom protestante é necessário saber ler. Por isso, a maioria dos abolicionistas norte-americanos era alfabetizada, porque eles eram protestantes. O oposto do Brasil”, explica. E acrescenta: “A segunda razão é que a abolição foi tardia, elitista e racista no Brasil. Os escravos não podiam participar das reuniões do movimento abolicionista. Muitos negros queriam participar, mas foram excluídos. Por isso se encontram tão poucos registros”.

Chicotealma: Liberdade Escrava.
Dramas dos escravos brasileiros. ©2009 Robert Krueger

Correio Braziliense

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