Isto é

O processo que investiga o Mensalão do PT no Supremo Tribunal Federal (STF) tem 69 mil páginas. São 147 volumes e 173 apensos. Entre os documentos, há 50 depoimentos inéditos colhidos pela Justiça Federal em todo o País ao longo de 2008 e 2009, laudos sigilosos da Polícia Federal, relatórios reservados do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), pareceres da Receita Federal e outras representações criminais que tramitam sob segredo de Justiça em vários Estados. O calhamaço faz a mais ampla e fiel radiografia do maior esquema de corrupção do País. Tudo isso, até hoje, estava sob sigilo de Justiça. Agora não mais. ISTOÉ teve acesso a todos esses documentos.

O conteúdo empresta ainda mais gravidade ao escândalo. Além de lançar luz sobre novos personagens – até aqui eram 40 réus –, a investigação derruba a versão de que o dinheiro público estava ileso do esquema de caixa 2 do PT. Chegou-se a levantar essa hipótese durante a CPI, mas não havia provas. Agora, os novos documentos e testemunhas asseguram a origem estatal dos recursos. Essas novas provas também jogam por terra a desculpa petista de que tudo foi feito para pagar despesas de campanha. Não. Diante de juízes e procuradores, testemunhas contaram em detalhes como atividades privadas de interesse partidário foram custeadas com as mesmas notas de dólares, euros e reais que circularam em cuecas e malas e ainda compravam apoios no Congresso.

São esses documentos que o ministro Joaquim Barbosa, relator do processo do Mensalão, usará para emitir seu julgamento. A leitura do processo que corre no STF evidencia que o Mensalão do PT é um cadáver ainda insepulto, capaz de provocar intempéries na corrida eleitoral. Parte da nova documentação analisada pelo Supremo atinge diretamente um importante dirigente petista que havia permanecido incólume durante todo o escândalo do Mensalão e que só agora tem seu nome envolvido na rede de corrupção. Trata-se do atual coordenador da campanha presidencial da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, e ex-prefeito de Belo Horizonte (2005-2008), Fernando Pimentel.

No processo 2008.38.00.012837-8, que investiga os crimes de lavagem de dinheiro e evasão de divisas e tramita sob sigilo na 4ª Vara da Justiça Federal em Minas Gerais e agora foi anexado ao caso do STF, ele é apontado como um dos operadores da remessa ilegal de recursos para o Exterior, depois usados para pagamentos de dívidas do PT com o publicitário Duda Mendonça. Nesse processo, o procurador da República Patrick Salgado Martins mostra as relações de Pimentel com o empresário Glauco Diniz Duarte e com o contador Alexandre Vianna de Aguilar. Ambos, segundo o Ministério Público Federal, enviaram ilegalmente para os Estados Unidos cerca de US$ 80 milhões. Parte desse dinheiro, como afirma o procurador, teria sido destinada às contas de Duda Mendonça, um dos personagens centrais do escândalo do Mensalão. Em 2005, depois que o caso se tornou público, o publicitário admitiu que mantinha uma conta com R$ 10 milhões não declarados nos EUA, em nome da Dusseldorf Company. Foi dinheiro que o publicitário reconheceu ter recebido como pagamento de campanhas feitas para o PT.

O roteiro final do mensalão – parte 2

Os novos documentos do processo no STF mostram que o caixa 2 do PT não foi usado apenas para o pagamento de dívidas de campanha, como sempre sustentaram o ex-tesoureiro do partido, Delúbio Soares, e toda a cúpula petista na tentativa de qualificar o caso como crime eleitoral, o que possibilitaria a aplicação de penas mais brandas contra eles. Em 9 de julho do ano passado, às 14 horas, em depoimento prestado na 1ª Vara Federal Criminal de Porto Alegre, o contador David Stival, membro da Executiva Regional do PT no Rio Grande do Sul, contou, que pelo menos uma boa quantia dos “recursos não contabilizados pelo partido” viajava livremente pelo País até chegar a destinos improváveis.

Eles irrigaram, por exemplo, as contas bancárias de fornecedores do Fórum Social Mundial, criado por movimentos de esquerda para fazer frente ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. No depoimento, Stival afirmou – numa posição inédita entre os dirigentes do partido – ter usado esse dinheiro suspeito para pagar “dívidas históricas” do Fórum, organizado pelo PT de Porto Alegre, que costuma ter o presidente Luiz Inácio Lula da Silva como a estrela maior. O depoimento de Stival é bastante detalhista. Ele diz que, terminada a eleição de 2002, o PT gaúcho estava com uma série de dívidas e que precisou recorrer à direção nacional do partido em busca de recursos. Afirmou que procurou o deputado José Genoino (SP), então presidente do PT, e que foi apresentado ao secretário nacional de Finanças, Delúbio Soares. Uma surpresa esperava Stival no encontro com Delúbio, que prometera lhe repassar R$ 1 milhão.

“Ele (Delúbio) pediu para buscarmos o dinheiro, mas não nos disse que o dinheiro seria em cash e a gente ficamos (sic) preocupados com isso”, relatou Stival. “Ele disse que teria que ser assim porque se tratava de um empréstimo feito pela Direção Nacional e que não poderia ser contabilizado. Disse que o empréstimo era do Banco Rural ou do BMG, mas que nós não poderíamos contabilizar aquele dinheiro.” O que seria uma solução virou então uma fonte de problemas, segundo a versão do dirigente do PT gaúcho, depois que ele desembarcou em Porto Alegre carregando uma mala com R$ 1 milhão. “Não podíamos pagar as dívidas de campanha com aquele dinheiro. As dívidas estavam todas com notas a pagar, registradas na contabilidade oficial do partido”, afirmou. Ainda diante do juiz, o dirigente regional do PT narrou o que foi feito do dinheiro. “Acabamos pagando fornecedores de outras dívidas históricas do Fórum Social Mundial, dívidas que não estavam na contabilidade oficial. O dinheiro nem entrou na sede do partido.”

Um dos principais desafios do ministro Joaquim Barbosa em relação ao Mensalão do PT é a identificação da origem dos recursos movimentados irregularmente. Até agora, os principais envolvidos no escândalo diziam que o caixa 2 petista não usava dinheiro público. Os novos depoimentos prestados à Justiça mostram que o Ministério Público e a Polícia Federal podem ter razão quando afirmam que o “núcleo empresarial do Mensalão, comandado pelo publicitário Marcos Valério, retirou dinheiro de órgãos administrados pelo PT.”

O roteiro final do mensalão – parte 3

A ação penal no STF traz depoimentos inéditos de testemunhas que comprovam definitivamente grandes movimentações de “dinheiro não contabilizado”, expressão usada pelo petista Delúbio Soares para justificar o Mensalão. Os testemunhos surpreendem, não apenas pelo seu valor jurídico, mas pela naturalidade com que os envolvidos tratam de uma questão criminal como se fosse algo rotineiro. Ex-presidente do Banco Popular do Brasil, Ivan Guimarães confirmou na Justiça Federal em São Paulo, no dia 27 de maio de 2009, que o PT movimentou dinheiro sujo. “Boa parte da crise era devido a esses empréstimos que não constaram da contabilidade, o caixa 2”, disse Guimarães, dando detalhes dos empréstimos que o PT fez no Rural e no BMG. “Tomei conhecimento destes empréstimos. Eu não me lembro o valor total, mas era algo superior a 40 milhões (de reais).” Guimarães afirmou ter participado das reuniões que escolheram a agência de Marcos Valério para trabalhar nas campanhas do Banco do Brasil, mas responsabilizou o conselho diretor e o ex-diretor Henrique Pizzolato.

Pelos depoimentos, fica evidente que práticas ilegais eram cotidianas nos escritórios dos partidos políticos. Funcionários das legendas não se constrangem ao se declarar abertamente como laranjas do esquema. Coordenadora da campanha do PP em 2004 no Paraná e secretária do ex-deputado José Janene (PP), Rosa Alice Valente confirmou à Justiça em 2009 que sua conta bancária foi utilizada pelo PP para receber dinheiro do PT nacional. O dinheiro chegava através da corretora Bônus Banval, que lavava o dinheiro do Mensalão. “O deputado me disse que foi feito um acordo entre o PT e o PP e que o Enivaldo Quadrado (então dono da Bônus Banval) iria me ligar e daí iria passar na minha conta pra mim (sic) repassar”, disse Rosa. Entre casos já conhecidos e outros só agora descobertos, as confissões surgem de todo lado. Em Alagoas, o deputado Paulo Fernando dos Santos, o Paulão (PT), revelou na Justiça ter recebido R$ 80 mil “não contabilizados” do PT. O dinheiro, segundo ele, era liberado por Delúbio Soares. Presidente do PT no Tocantins na época das fraudes, Divino Nogueira revelou que recebeu dinheiro de caixa 2 do PT nacional, enviado por Delúbio. O ex-deputado baiano Eujácio Simões, que era do extinto PL, afirmou ter recebido R$ 30 mil de caixa 2 do deputado Valdemar Costa Neto (PL-SP), um dos principais protagonistas do esquema.

Em alguns relatos, os detalhes são tão ricos quanto as quantias movimentadas irregularmente pelos políticos. É o caso do testemunho do empresário José Carlos Batista, sócio da Garanhuns Empreendimentos, empresa que ficou conhecida na época do Mensalão como lavanderia do Mensalão. Réu no processo, Batista decidiu contar tudo o que sabe para ser beneficiado pelo instrumento da delação premiada. Foi ouvido na condição de informante. Pela primeira vez, disse que era dono da Garanhuns apenas no papel porque, na verdade, era “laranja” do verdadeiro dono da empresa, Lúcio Funaro, amigo de Costa Neto. Batista esmiúça como entregou pessoalmente, a pedido de Funaro, quase R$ 3 milhões do esquema do PT para o deputado do PL bancar a campanha eleitoral de 2004. O dinheiro foi entregue na sede do PL em São Paulo.

Eram recursos repassados a Funaro por Valério com base em um “contrato fictício” de compras de certificado de reflorestamento da Garanhuns para a SMP&B. Já se sabia que a Garanhuns fora usada por Valério para esquentar o dinheiro repassado do caixa 2 do PT para o PL. O publicitário sempre negou. Em seu depoimento, Batista não só se define como “laranja” como cria dificuldade para aqueles que querem contestar a sua versão do fato pela quantidade de informações que forneceu à Justiça. Ele cita modelos de veículos em que o dinheiro foi carregado em “caixas de papelão”, horários de voos, nomes de intermediários e destinos do dinheiro, como a cidade de Mogi das Cruzes, no interior paulista. São esses detalhes que irão influenciar o ministro relator na hora de confrontar depoimentos contraditórios.

Só falta Arruda

Brasília continua a viver sua tragédia política. Na terça-feira 23, o governador em exercício, Paulo Octávio, conhecido como P.O., renunciou depois de 12 dias de interinidade. Agora, as atenções se voltam para José Roberto Arruda, preso na sede da Polícia Federal. Ele vai sacrificar o mandato? Sua defesa está oferecendo a renúncia em troca da liberdade e também para escapar do processo de impeachment. Alvo da mesma investigação que levou Arruda à prisão, P.O. não perdeu tanto tempo. Depois de um churrasco no sábado 20 que atraiu  apenas cinco dos 30 deputados distritais, sentiu-se isolado e decidiu sair de cena. “A batalha está perdida”, disse a P.O. dona Wilma Pereira, a matriarca da família, acostumada a ver a casa cheia de políticos de diferentes matizes. No mesmo dia, ele redigiu a nova carta de renúncia e culpou o DEM por ter lhe abandonado. “Não é possível governar sangrando em praça pública”, escreveu. Em outra carta, P.O. pediu a desfiliação do partido, ciente de que sua expulsão era certa. “Saio da política para retornar às fileiras da cidadania”, disse, numa versão enviezada da despedida de Getúlio Vargas. Definitivamente, P.O. não entrará para a história.

Com a saída de cena de P.O., a capital federal caiu agora nas mãos do deputado Wilson Lima (PR). Político de pouca expressão, Lima foi eleito presidente da Câmara Legislativa em janeiro, num acordo da base aliada, após a renúncia de Leonardo Prudente – o deputado que foi flagrado escondendo dinheiro nas meias. Antes de entrar para a vida pública, Lima foi mecânico, frentista e vendedor de picolé. Católico fervoroso, o novo governador deve  enfrentar uma via-crúcis para conseguir a desejada sustentabilidade.

“Não vamos fazer acordo. A Câmara não será mais um ‘puxadinho’ do Buritinga”, garante o deputado Cabo Patrício (PT), que substituiu Lima no comando do Legislativo local. Para Patrício, a única forma de evitar a intervenção federal “é o novo governador mostrar que não é conivente com a corrupção da gestão anterior”. Embora não esteja sendo investigado pela Operação Caixa de Pandora, o novo governador é alvo de ação do MP por improbidade administrativa. O MP questiona a criação ilegal de cargos de confiança quando Lima era responsável pela área de pessoal da Câmara, em 2008. Ao assumir o cargo, Lima defendeu medidas moralizadoras para evitar a intervenção federal. Além de afastar dois secretários citados em gravações da PF, ele suspendeu os contratos com empresas envolvidas no esquema de propinas. As medidas, no entanto, não sensibilizaram o procurador-geral Roberto Gurgel.

Só sob renúncia

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceita libertar José Roberto Arruda (sem partido, ex-DEM) em troca da renúncia dele ao governo do Distrito Federal. Na avaliação dos juízes, por ter ficado preso durante duas semanas, o governador não ameaça mais as investigações e não tem como obstruir o inquérito da Operação Caixa de Pandora. O que o STJ não aceita é que Arruda se mantenha apenas como “governador licenciado até o fim das investigações”, como querem os advogados.Preso na Superintendência da Polícia Federal (PF), Arruda negocia renunciar ao mandato e pedir a soltura diretamente ao ministro Fernando Gonçalves, do STJ, relator do inquérito do “mensalão do DEM”. O ministro, em caso de renúncia, relaxaria a prisão do governador, descartando o julgamento de habeas-corpus no Supremo Tribunal Federal (STF).

Licenciado apenas, ele mantém poder político para barganhar com os aliados na Câmara Legislativa uma possível volta ao poder. Renunciando, Arruda apressa a soltura e não precisa mais esperar pelo julgamento do habeas na Corte. Arruda foi preso porque obstruiu as investigações da Operação Caixa de Pandora. Como governador, mobilizou recursos e pessoal do governo do DF para subornar uma testemunha. A negociação ocorre há mais de uma semana. Ontem, o advogado de Arruda, Nélio Machado, anunciou que o governador afastado não voltará mais ao governo. Inicialmente, adotou o discurso de que ele assumiria o compromisso de ficar licenciado – se fosse colocado em liberdade pela Justiça. O discurso, por enquanto, é um ensaio para obter sinalização de que o governador será solto se executar um gesto político de que não pretende reassumir o governo. Porém, a tese da licença não é bem recebida por Gonçalves, nem pelo STF. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

FHC vira âncora de documentário sobre drogas

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso passou o dia no Rio gravando o documentário sobre descriminalização das drogas, cujo título provisório é “Rompendo o silêncio”. Âncora do filme, ele visitou pela manhã a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), no Morro Santa Marta, em Botafogo, na zona sul da cidade. FH percorreu vielas, conversou com moradores e entrevistou a responsável pelo policiamento, a capitã da Polícia Militar Priscilla Azevedo. A imprensa não acompanhou a visita. De acordo com a Assessoria do governo do Estado, o ex-presidente elogiou as UPPs. “Vão dizer que tem poucas favelas ocupadas, que é impossível. Mas já são 100 mil pessoas no Rio em condições melhores, isso não é brincadeira, dá uma cidade de porte médio”, avaliou FH durante as gravações.

À tarde, ele visitou o depósito de armas apreendidas da Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (Dfae), no Centro do Rio. “São mais de 100 mil armas recuperadas. Há uma ligação muito grande entre o tráfico de drogas e o tráfico de armamentos. Isso requer um trabalho de inteligência em longo prazo. Não será resolvido com uma receita mágica. Apenas a repressão não resolve. É preciso assistência ao usuário e uma perseguição mais eficaz a um crime que se globalizou”, declarou. FH comentou ainda a realização da Marcha do Orégano, a manifestação planejada por universitários amanhã para ironizar a proibição da Marcha da Maconha na capital paulista. “Em geral sou bem aberto em relação às manifestações. Desde que sejam pacíficas, não vejo por que não deixar que existam”, opinou.

Veja

“Meu caro presidente…”

Na noite de 13 de junho de 1964, pouco mais de dois meses após o golpe militar que estabeleceu uma ditadura no Brasil, o ex-presidente Juscelino Kubitschek embarcava solitariamente no Rio de Janeiro rumo ao exílio voluntário na Europa. JK, o festejado presidente bossa-nova, tivera o mandato e os direitos políticos cassados pelos militares. Despedia-se do país sob o rugido aziago das turbinas do avião da Ibéria que o levaria a Madri. No jato, partiam Juscelino e os anos dourados. Em terra, ficavam os militares e os anos de chumbo. Quando Juscelino subiu as escadas do avião, um braço o alcançou. Era Tancredo de Almeida Neves, que completaria 100 anos nesta semana, em 4 de março. Aos 54 anos, Tancredo era deputado, crítico do regime, mas ainda não tinha o tamanho de Juscelino. Deixaram-no ficar. Juscelino, porém, projetava uma sombra democrática por demais incômoda aos militares. “Meu caro Tancredo”, escreveu Juscelino de Paris, dois meses depois do embarque, numa das primeiras cartas de uma correspondência que se avolumaria no decorrer daqueles tempos lúgubres, “lembro-me bem de que a sua foi a última mão que apertei antes de me dirigir ao avião. Naquele instante de brutalidade, a sua presença me confortou.”

Foi em meio à brutalidade do regime militar que a amizade entre ambos amadureceu, transcendendo as conveniências da política – e amadureceu por meio das epístolas que ambos trocavam. VEJA teve acesso a um conjunto de dez cartas inéditas, escritas por eles durante o regime militar. Começam em julho de 1964, quando Tancredo descreve os movimentos do regime para destruir a reputação de JK, e terminam em julho de 1975, quando o ex-presidente agradece por mais uma leva de discursos remetidos pelo amigo. A correspondência percorre um arco de onze anos, nos quais Tancredo esteve no Congresso, enfrentando a ditadura por dentro. Ele tentava dissolver na legalidade um regime que operava fora dela. Por fora também agia JK, que, amaldiçoado pelos militares, amargava um limbo público, exilado ora no exterior, ora no Brasil. No plano político, as missivas expõem a convergência de afinidades entre dois grandes estadistas. Desde a despedida no aeroporto do Rio, Tancredo trabalhou para retomar a democracia no país. Foi deputado, senador e governador. Eleito presidente por um colégio eleitoral em 1985, adoeceu um dia antes de tomar posse, morrendo pouco mais de um mês depois – mas sua obra já estava terminada: o poder foi entregue aos civis.

Nas cartas trocadas entre os dois, há ideias, há projetos políticos, há a genuína preocupação com os atalhos autoritários tomados pelos militares. Há, sobretudo, a obsessão em restaurar a democracia no país. São linhas escritas com sinceridade por homens que compreendiam as exigências daquela tormentosa circunstância histórica – e, mais do que isso, sabiam quais sacrifícios eram necessários para superá-la. JK e Tancredo usam expressões como “dignidade democrática”, “objetivo maior” e “bravura moral”. Não há nenhuma menção a cargos, emendas, empregos para a família… Nada do que tanto faz salivar a maioria dos políticos do nosso tempo está naquelas linhas, numa mostra constrangedora do declínio ético e intelectual da classe política brasileira. Num ambiente infestado nos últimos anos pelo cinismo dos mensaleiros e pela mendacidade dos deputados propineiros de Brasília, as epístolas servem de guia para outra categoria de políticos – aqueles poucos que reúnem coragem suficiente para caminhar na direção contrária do que exige a cultura partidária do país.

O maior lobista do país

De tempos em tempos, o governo Lula se vê obrigado a explicar ne-gócios obscuros, lobbies bilionários, maletas de dinheiro voadoras e beneficiamento a grupos privados. Já é uma espécie de tradição petista. E o que une todos esses casos explosivos? José Dirceu, o ex-militante de esquerda e ex-ministro-chefe da Casa Civil que se transformou no maior lobista da República. Onde quer que brote um caso suspeito incluindo gente do PT e dinheiro alto, cedo ou tarde o nome de Dirceu aparecerá. Ele tem se esgueirado nas sombras, como intermediador de negócios entre a iniciativa privada e o governo desde 2005, quando foi expurgado do cargo de ministro por causa do escândalo do mensalão. Sem emprego, argumentou que precisava ganhar a vida e se reinventou como “consultor”, o eterno eufemismo para “lobista”. Passou a oferecer, então, duas mercadorias: informação (dos tempos de Casa Civil, guarda os planos do governo para os mais diversos setores da economia) e influência (como o próprio Dirceu adora dizer, quando ele dá um telefonema para o governo, “é O telefonema”). Em ambos os casos, cobra bem caro por seus serviços.

Na semana passada, um dos serviços do “consultor” José Dirceu causou um terremoto em Brasília. Os jornalistas Marcio Aith e Julio Wiziack revelaram que ele está metido até a raiz dos cabelos implantados em uma operação bilionária para criar a maior operadora de internet em banda larga do país. O negócio está sendo coordenado pelo governo desde 2003 e vai custar uma montanha de dinheiro público – fala-se em até 15 bilhões de reais. Deverá fazer a alegria de um grupo de investidores privados que, ao que tudo indica, tiveram acesso a informações privilegiadas e esperam aproveitar as ações do governo para embolsar uma fortuna. O Plano Nacional de Banda Larga – nome oficial do projeto sob suspeita – começou a ser gestado no início do governo Lula, quando Dirceu ainda era ministro. A ideia era criar uma estatal para oferecer internet em alta velocidade a preços subsidiados em todo o país – uma espécie de “Bolsa Família da web”.

Dirceu passou a defender a ideia de que a nova empresa fosse erguida a partir de outras duas, já existentes, mas que estavam em frangalhos: a Telebrás, que depois da privatização do sistema de telefonia, em 1998, ficou sem função, e a Eletronet, dona de uma rede de fibra óptica que cobre dezoito estados. A Eletronet era uma parceria da Eletrobrás e da americana AES, mas, por ser deficitária, estava em processo de falência. O projeto de Dirceu era capitalizar as duas companhias e fazer com que a Telebrás oferecesse internet em alta velocidade usando a rede da Eletronet. O presidente Lula aprovou a proposta – afinal, não é todo dia que se antevê uma estatal inteira, pronta para ser aparelhada. Apesar de o projeto ter sido desenhado em 2003, só começou a se tornar público em 2007. E este foi o pulo do gato: quem ficou sabendo dos planos oficiais com antecedência teve a chance de investir nas ações das duas empresas e, agora, poderá ganhar um bom dinheiro com o desenlace do plano.

A intervenção está mais próxima

Há duas semanas, a Justiça mandou prender e afastar o governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, para impedi-lo de sabotar as investigações sobre o escândalo do mensalão de Brasília. A medida, inédita desde a redemocratização, preservou a investigação criminal – mas produziu um buraco negro político na capital do país. O vice-governador Paulo Octávio, suspeito de embolsar um terço das propinas, renunciou doze dias depois de assumir. Na semana passada, o presidente da Câmara Legislativa, Wilson Lima, tomou posse como governador, mas com grande risco de não ter tempo sequer de esquentar a cadeira. Réu por improbidade administrativa, Lima é aliado de Arruda e deve ao governador preso sua indicação para presidir a Câmara. Sua ascensão é vista como uma forma de a quadrilha continuar mantendo os tentáculos espalhados por onde quer que se olhe. Por isso, a intervenção federal surge como o único mecanismo que pode extirpar definitivamente a corrupção que se apossou das instituições. Ela já foi solicitada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel.

Intervenção federal é uma medida excepcional. É tão extrema que, apesar de prevista na Constituição, nunca foi usada no Brasil. Especialistas ouvidos por VEJA, porém, veem na medida a única solução para a crise. “A situação já tomou proporções caóticas. As instituições de Brasília estão todas contaminadas”, analisa o cientista político Claudio Abramo. A corrupção, enraizada no governo de Arruda, se entranhou no Legislativo, em que oito dos 24 deputados distritais são suspeitos de receber propina, e até no Judiciário, em que três desembargadores foram acusados de integrar o esquema. Os deputados flagrados recebendo dinheiro foram decisivos para a eleição de Wilson Lima ao comando da Câmara e sua consequente chegada ao governo da capital.

Diante de um quadro tão contaminado, é provável que somente a intervenção seja capaz de exterminar as ramificações criminosas de Arruda e seu bando. A simples ameaça de isso acontecer já produziu resultados. Em uma semana, a Câmara Distrital aprovou a abertura do processo de impeachment contra o governador afastado, o vice-governador e três deputados suspeitos. Entre eles, Leonardo Prudente, o deputado da meia, que renunciou na última sexta. O próprio Arruda, antes irredutível em relação a uma eventual renúncia, já pensa em afastar-se definitivamente. A situação política de Brasília é tão caótica que nem o PT parece animado com a possibilidade de o presidente Lula indicar um interventor. Sem contar a enorme dificuldade em encontrar alguém disposto a cumprir a missão de enfiar a cabeça, os pés e as mãos no lamaçal em que se transformou a política da capital do país.

A brandura de Lula com a ditadura cubana

O corpo alquebrado de Orlando Zapata Tamayo está chegando ao cemitério. Durante 85 dias, o homem humilde, um pedreiro que se transformou em defensor da liberdade, resistiu. Com a única arma de que dispunha, a greve de fome, ele resistiu. Condenado a 56 anos de prisão, “reduzidos” a 25, pelo crime de clamar pela democracia, foi enterrado vivo numa cela minúscula. Apanhava, era maltratado, xingado de verme. “O fato de ser negro contribuiu para a gana psicológica dos carcereiros. É o velho argumento de que por ser negro não se tem direito a protestar, porque a revolução te deu tudo”, contou outro resistente, Manuel Costa Morúa. Supliciado em vida, nem na morte Zapata teve paz. Outros dissidentes que tentaram lhe prestar uma derradeira homenagem foram detidos. O caixão foi carregado por agentes da polícia política. O presidente Lula chegou a Cuba exatamente no dia da morte de Zapata. Suas declarações a respeito: “Temos de lamentar, como ser humano, sobre alguém que morreu porque decidiu fazer greve de fome, que vocês sabem que eu sou contra porque fiz greve de fome. Se essas pessoas tivessem falado comigo antes, eu teria pedido para ele parar a greve e quem sabe teria evitado que ele morresse. Lamento profundamente que uma pessoa se deixe morrer por uma greve de fome”.

Lula foi visitar os irmãos ditadores, Fidel, o afastado, e Raúl Castro, o ativo no comando. Ao receber o presidente e sua sorridente comitiva, Raúl, ao contrário de Lula, não culpou o morto. De quem foi a culpa? Dos americanos. “Isso se deve à confrontação que temos com os Estados Unidos. Aqui não houve nenhuma execução extrajudicial.” Mais sorrisos, mais alegria. A morte de Zapata já era esperada por seus companheiros de oposição. Ele estava tão exaurido que não haveria mais retorno. Mesmo assim, tentaram se comunicar por carta com o visitante ilustre para pedir ajuda. Mas cometeram um grave erro de etiqueta. As declarações do presidente Lula a respeito: “As pessoas precisam parar com o hábito de fazer cartas, guardar para si e depois dizer que mandaram para os outros. Quando uma pessoa manda uma carta para um presidente, no mínimo, só pode dizer que o presidente a recebeu se protocolar a carta”.

O autor da carta em questão é o economista cubano Oscar Espinosa Chepe. Preso em 2003 com Zapata, foi solto mais tarde, por problemas de saúde. Chepe consultou 42 prisioneiros políticos e escreveu um apelo ao presidente brasileiro. Na quinta-feira, dia 18, ligou para a Embaixada do Brasil em Havana e apresentou o pedido de uma reunião com o embaixador para entregar a carta. “Nossa política é de não receber dissidentes cubanos”, disse a secretária, segundo seu relato. “Eu achei que Lula, por ter sido um trabalhador preso injustamente, iria se solidarizar conosco. Sua reação foi uma surpresa para todos”, disse Chepe a Veja.

CartaCapital

Privatizações à moda tucana (por Mino Carta)

Basta que Dilma Rousseff, pré-candidata do PT à Presidência da República recém-ungida por Lula, faça referências bastante genéricas à natural, inescapável relação entre Estado e Economia, e de pronto o deus nos acuda se estabelece. Quem acompanha a cobertura jornalística, quem lê os editoriais dos jornalões, fica exposto à sensação (à certeza?) de que, se Dilma ganhasse as próximas eleições, o Brasil cairia nas mãos da horda estatizante.

Mauricio Dias, em sua Rosa dos Ventos, agudamente avisou, faz duas semanas, que a divergência quanto à correta interpretação do papel do Estado nos domínios econômicos acabaria por excitar cada vez mais o debate eleitoral. Pois a questão está posta, e ganha tons exasperados, e até anacrônicos, na convicção medieval de que aos barões cabe a propriedade de tudo.

Nesta edição, o confronto já esboçado está na capa. Aqui me agrada recordar certas, fundamentais circunstâncias em que se deram as privatizações celebradas como trunfo do governo de Fernando Henrique Cardoso, entre elas, em primeiro lugar, o desmantelamento da velha Telebrás, leiloada para uma plateia de barões à sombra do martelo de um punhado de extraordinários leiloeiros.

Final de 1998, FHC já reeleito, mas ainda não empossado, para o segundo mandato. Operação entregue aos cuidados do então ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, de André Lara Resende, presidente do BNDES, de Ricardo Sergio de Oliveira, diretor do Banco do Brasil. Entre outros menos qualificados. Grampos variados acabaram por revelar o pano de fundo de uma bandalheira sem precedentes na história pátria.

E assim caminha o valerioduto

A 9ª vara criminal de Belo Horizonte aceitou, na quinta-feira 25, a denúncia contra 11 dos 14 acusados de participação no esquema do Valerioduto – o uso de caixa 2 na campanha ao governo de Minas Gerais, em 1998, do hoje senador Eduardo Azeredo (PSDB). Entre os denunciados estão o publicitário Marcos Valério e o ex-ministro das Relações Institucionais do governo Lula Walfrido dos Mares Guia. O processo contra Azeredo, em razão de ele exercer o mandato de senador, fica sob a responsabilidade do Supremo Tribunal Federal (STF). O tribunal aceitou, em dezembro do ano passado, a denúncia contra o tucano. Marcos Valério já é réu no caso do mensalão, também em andamento no STF.

Os acusados vão responder pelos crimes de peculato e lavagem de dinheiro. Eles teriam montado o caixa 2 para ocultar doações. Conforme a denúncia, duas agências de publicidade de Valério captaram 28,5 milhões de reais para utilizar na campanha. Como recompensa, o publicitário conseguiu depois firmar contratos com um banco público, o Banco do Estado de Minas Gerais (Bemge), e duas empresas estatais – a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e a Companhia Mineradora de Minas Gerais (Comig). Teriam sido desviados 3,5 milhões por meio desses contratos. Os envolvidos negam o esquema de caixa 2. Apenas três dos acusados não tiveram a denúncia aceita pela juíza Neide da Silva Martins. A magistrada entendeu que não havia “elementos suficientes para sustentar a imputação a eles formulada”.

Relator do Valerioduto no STF, o ministro Joaquim Barbosa decidiu, em maio de 2009, desmembrar o processo. Assim, os envolvidos – com exceção de Azeredo – passaram a responder ao processo na primeira instância da Justiça Federal. No entender da juíza Neide Martins, os crimes apontados nessa denúncia são de competência da Justiça estadual. O advogado de Valério, Marcelo Leonardo, diz que a esfera estadual não seria o foro adequado em razão de o publicitário já responder a duas ações na Justiça Federal relacionadas ao Valerioduto.

Lula, Cuba e o dissidente

Durante sua visita a Havana, o presidente Lula irritou-se com as perguntas sobre a morte do preso político Orlando Zapata Tamayo,que estava em greve de fome havia 85 dias. E negou ter recebido uma carta de Tamayo: “As pessoas precisam parar com o hábito de fazer cartas, guardar para si e depois dizer que me mandaram”. A morte do dissidente é mais um daqueles cristalinos exemplos da estupidez dos regimes ditatoriais. Quanto a Lula, carrega o peso da fama hoje internacional de mediador. Da crise política do DEM no Distrito Federal aos oposicionistas cubanos, todos querem que o ex-metalúrgico coloque a sua popularidade a serviço de seus interesses.

Os 33 mosqueteiros

Na cúpula dos integrantes do Grupo do Rio em Playa del Carmen (México, perto de Cancún), decidiu-se criar uma Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, da qual participarão todos os países das três Américas, exceto EUA e Canadá – mas incluindo Cuba e, eventualmente, Honduras, ausente desta reunião por seu atual governo não ser reconhecido pela maioria dos 32 países representados.

A festa foi perturbada por mais um bate-boca entre Álvaro Uribe e Hugo Chávez. Durante o almoço, o primeiro queixou-se de agressões verbais anteriores do venezuelano e de restrições ao comércio com a Colômbia e o segundo cedeu à provocação até ambos trocarem insultos. Raúl Castro, nada menos, acalmou os ânimos: “Como é possível brigarmos em uma cúpula destinada a unir países latino-americanos e caribenhos?”

A turma do deixa-disso teve êxito. O acordo deve ser concretizado nas próximas cúpulas, marcadas para 2011 na Venezuela e 2012 no Chile e os chefes de Estado foram unânimes em apoiar a Argentina na reivindicação sobre as Malvinas. Segue o turbulento caminho para um bloco maior que a Unasul, capaz de defender interesses próprios que não são os do Norte e tratar com os EUA de igual para igual, sem a tutela da OEA.

Intervenção federal já!

Várias iniciativas anticorrupção foram deflagradas no Distrito Federal para enfrentar os males saídos de uma “caixa de Pandora” descoberta pela Polícia Federal. Essa caixa foi aberta por um colaborador de Justiça em busca de premiação legal e que, em troca dela, oferta provas de tentacular esquema de corrupção sob o comando do governador José Roberto Arruda. A propósito, o direito premial foi intuído em 1877 pelo jusfilósofo alemão Rudolfvon Jhering, que o considerou de emprego indispensável nos séculos vindouros em face do fortalecimento e da ousadia do poder criminal. Não se sabe ter a intuição de Jhering surgido ao comprar um panetone.

Passos largos já foram dados. Por exemplo, o aforamento, pela Procuradoria-Geral da República, de pedido de intervenção federal nos enlameados poderes Executivo e Legislativo do DF. Por seu lado, o Ministério Público distrital ajuizou ação para anulação do plano diretor, com convicção de canalização de obras públicas para as empresas do autodefenestrado vice-governador Paulo Octávio. Além disso, e como medida de segurança social necessária, a cúpula do Superior Tribunal de Justiça, por expressiva maioria, decretou a prisão preventiva do governador Arruda por tentar impedir a busca da verdade pela Justiça. Antes de rumar para a cadeia, Arruda licenciou-se do governo e trilha a mesma estratégia de resistência empregada por Renan Calheiros e José Sarney, bem típica de uma tropical república bananeira.

A decisão sobre a prisão cautelar não foi derrubada liminarmente em habeas corpus liberatório que tramita no STF e cujo exame de mérito ocorrerá em breve. No julgamento, haverá um embate jurídico entre o relator, o ministro Marco Aurélio, e o presidente do Tribunal, Gilmar Mendes, pró-soltura e que já deixou vazar pela imprensa algumas dúvidas sobre a participação de Arruda em tentativa de desvirtuar a apuração. Revelou-se, porém, que Arruda, por informantes, teve conhecimento antecipado da operação policial e se mexeu. Assim, visitou o ministro responsável pelo inquérito (o mesmo que votou pela sua prisão cautelar), conseguiu peças sigilosas dos autos e colocou o chefe de gabinete do governador Aécio Neves para fazer lobby no gabinete do ministro relator. Será que Arruda seria capaz de corromper testemunhas ou só painéis eletrônicos do Senado?

Época

Uma sombra na campanha

O Congresso Nacional do PT, que aclamou a candidatura da ministra Dilma Rousseff à Presidência da República, foi marcado também por discursos em defesa do “Estado forte” e pela volta do ex-ministro José Dirceu ao Diretório Nacional do partido, sob a ovação dos militantes. Dirceu, antecessor de Dilma na Casa Civil, saiu do cargo em meio ao escândalo do mensalão em 2005, pelo qual responde a um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) em que é acusado de ter liderado o esquema que teria comprado o apoio de parlamentares e partidos ao governo Lula no Congresso. De lá para cá, sem mandato e sem direitos políticos, Dirceu tornou-se um personagem anfíbio. Passou a desenvolver ao mesmo tempo a atividade de militante partidário, com influência na cúpula do PT e acesso aos altos escalões do governo, e a de “consultor” de empresas privadas. Na semana passada, a controversa face político-empresarial de José Dirceu voltou a ser exibida e expôs também o lado nebuloso do discurso petista a favor do “Estado forte”.

Uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo revelou que Dirceu recebeu R$ 620 mil, entre 2007 e 2009, em troca de serviços de consultoria prestados ao empresário Nelson dos Santos, que tem investimentos no setor de energia e é conhecido no mercado como um intermediador de grandes negócios. Em 2005, Santos, por meio da Star Overseas Ventures, uma companhia sediada no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas, comprou por R$ 1 uma participação numa empresa falida chamada Eletronet. Constituída no fim dos anos 90, a Eletronet surgiu com 51% de suas ações em poder da americana AES e 49% em poder de empresas elétricas do grupo estatal Eletrobrás. O objetivo da associação era explorar comercialmente, fornecendo serviços de telecomunicação, o uso do principal ativo da Eletronet: o direito de uso de uma rede de 16.000 quilômetros de cabos de fibra óptica da Eletrobrás que interliga 18 Estados. Em 2003, sem conseguir competir com as empresas de telefonia privadas, a Eletronet pediu falência, deixando uma dívida com fornecedores estimada em R$ 800 milhões.

A massa falida da Eletronet voltou a despertar interesse quando o governo Lula começou a esboçar o Plano Nacional de Banda Larga, um programa para popularizar a internet de banda larga, que tem preços altos e difusão baixíssima no Brasil em relação ao resto do mundo. Ao mesmo tempo, o governo iniciou estudos para ressuscitar a Telebrás, a antiga holding estatal do setor de telefonia, com o objetivo de entregar a ela a administração do programa (leia mais na reportagem A horripilante volta da Telebrás) e da rede de cabos de fibra óptica que estava concedida à Eletronet. O R$ 1 gasto por Nelson dos Santos poderia se transformar em milhões se o Palácio do Planalto tomasse a decisão de recuperar a Eletronet da falência– hipótese que estava em estudo no governo quando Dirceu foi contratado por Nelson dos Santos no começo de 2007. No mesmo período, Dirceu começou a postar em seu blog artigos a favor da incorporação da rede da Eletronet ao programa de banda larga – embora ele diga que sua consultoria para Santos serviu apenas para análise de cenários econômicos na América Latina.

A horripilante volta da Telebrás

Histórias contadas em todas as formas, na literatura, no cinema e até no rock, fazem bem em nos lembrar que quem morreu deveria continuar morto, para nossa saúde e sanidade. Da formosa Lenore da imaginação elegante do escritor Edgar Allan Poe ao assassino de crianças Freddy Krueger dos filmes A hora do pesadelo, a ameaça de retorno dos finados nos ensina que quem partiu deveria repousar em paz – para sempre. O Brasil ganharia muito se aplicasse a lição a ideias ultrapassadas. Para nosso infortúnio, algumas delas teimam em retornar do além. O mais novo exemplo é a nova companhia estatal de telecomunicações, uma versão da antiga Telebrás, cuja criação ou recriação o governo federal debate há meses. Nessa história de horror, estamos chegando ao momento do susto ou do alívio, pois a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deverá ser anunciada até o início de abril.

A aterrorizante ideia do retorno estatal às telecomunicações nasceu de uma constatação correta: o Brasil está atrasado na difusão da internet rápida, também chamada de banda larga. Ela torna possível o fluxo de maior quantidade de informação e permite ao internauta assistir a vídeos, receber ou enviar arquivos grandes com conforto e segurança. Somente 6% dos brasileiros dispõem de internet rápida, em comparação aos 8% dos argentinos e aos 9% dos mexicanos. Em nações como Canadá, Alemanha e França, mais de um quarto da população dispõe desses serviços. Na Coreia do Sul, 97% das residências podem usar a banda larga. Por aqui, mais da metade dos municípios, ou um quinto da população, não conseguiria aproveitar a internet rápida nem que tivesse dinheiro para pagar, pois não há oferta do serviço. Apesar do diagnóstico correto, o remédio estatal proposto pelo governo é um equívoco.

Um aliado que perde força

A cartilha clássica da política recomenda aos governantes abrir seus sacos de maldades logo no início do mandato para chegar ao período eleitoral sem muitos danos à imagem. Outro tópico dessa cartilha diz que escândalos e crises devem ser enfrentados com medidas drásticas ou com a negação veemente das acusações, até que elas sejam esquecidas. O DEM, sigla resultante da lipoaspiração radical sofrida pelo PFL, acaba de seguir meticulosamente essas duas regras. Em 2009, no primeiro ano de seu atual mandato, o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, autorizou medidas impopulares como o aumento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o reajuste da tarifa de ônibus. Respeitando a segunda recomendação da cartilha, os democratas também foram rápidos para se livrar de José Roberto Arruda e de Paulo Octávio, governador afastado e ex-vice-governador do Distrito Federal, atingidos pelo escândalo do panetone.

Mas as medidas podem ser insuficientes para estancar a hemorragia no DEM. Além de representar um desafio à relevância da legenda, ela atrapalha a provável candidatura presidencial do governador de São Paulo, José Serra (PSDB). Na prefeitura de São Paulo, principal ativo político do DEM depois da implosão do governo Arruda, Kassab enfrenta uma crise sem precedentes. Às medidas impopulares, somaram-se, no começo do ano, falhas no serviço de manutenção da cidade que contribuíram para uma temporada de inundações de proporções históricas. A crise foi agravada pela acusação de que Kassab teria recebido doações ilegais na campanha à reeleição, em 2008. De acordo com uma ação do Ministério Público, um sindicato da construção civil e empreiteiras acionistas de concessionárias de serviços públicos foram responsáveis por 33% dos recursos arrecadados pelo DEM – prática vedada na lei. Na semana passada, o mandato de Kassab chegou a ser cassado pelo juiz Aloísio Silveira, da 1a Zona Eleitoral de São Paulo. Kassab apresentou um recurso e vai aguardar no cargo a decisão da Justiça.

O fantasma da intervenção

Desde novembro do ano passado, a vida política e administrativa de Brasília não sai da crise deflagrada pela Operação Caixa de Pandora – uma investigação conjunta da Procuradoria-Geral da República e da Polícia Federal. Vídeos mostraram as principais autoridades da cidade, entre elas o governador José Roberto Arruda, recebendo dinheiro de uma suposta propina paga por empresas com contratos com o governo do Distrito Federal. Há 15 dias, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decretou a prisão de Arruda e afastou-o do cargo. Na semana passada, o vice-governador Paulo Octávio Pereira, também envolvido no escândalo, renunciou ao mandato. Desde a quarta-feira passada, Brasília é governada pelo deputado distrital Wilson Lima (PR), um político obscuro que, por sua fidelidade a Arruda, há menos de um mês foi eleito presidente da Câmara Legislativa.

Por seu histórico, Lima é um nome fraco para se manter no cargo. Antes de ingressar na política, ele vendeu picolé nas ruas, foi cobrador de ônibus, frentista, pintor de parede e dono de um mercado. No loteamento político promovido por Arruda, o quinhão de Lima é o Gama, cidade-satélite de Brasília onde os cargos são ocupados por seus apadrinhados. Colegas distritais dizem que Lima, como relator do projeto que mudou a destinação do uso de terrenos no Gama, beneficiou empresários amigos ao autorizar empreendimentos comerciais em áreas residenciais. Lima também responde na Justiça a uma ação de improbidade administrativa, pela criação ilegal de cargos na Câmara. Suas iniciais aparecem ainda num papel apreendido pela PF na Operação Caixa de Pandora, um balanço com números e referências a outros deputados distritais que a polícia tenta decifrar. Lima nega ter praticado irregularidades na Câmara ou recebido dinheiro de propina.

Época apurou que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) não aceitam a volta de Arruda ao governo nem a permanência de Lima como governador interino. A defesa de Arruda anunciou que ele estaria disposto a assinar uma carta em que se compromete a não voltar ao governo em troca da liberdade. A proposta não foi levada a sério. Segundo ministros do STF, se não renunciar, Arruda deve permanecer preso. “A palavra renúncia não existe no vocabulário do governador José Roberto Arruda”, afirmou o advogado Nélio Machado, defensor de Arruda. Em 2001, Arruda disse a mesma coisa depois de flagrado no escândalo da violação do painel eletrônico do Senado. Quando se convenceu de que seria cassado pelos senadores, ele renunciou.

Os problemas do amigo de Dilma

Ex-prefeito de Belo Horizonte e coordenador da pré-campanha da ministra Dilma Rousseff à Presidência da República, Fernando Pimentel é uma das lideranças emergentes do PT. No final de 2008, ele deixou a prefeitura após sete anos de gestão, com uma aprovação superior a 80%, e elegeu seu sucessor. No PT mineiro, Pimentel leva vantagem no embate contra o ministro do Desenvolvimento Social, Patrus Ananias, pelo direito de ser o candidato do PT ao governo de Minas Gerais. Pimentel também é o principal organizador da futura campanha presidencial da amiga Dilma. Os dois militaram juntos em grupos de esquerda que combateram a ditadura militar nos anos 1960 e 1970. Se o passado mais distante explica a ascensão junto a Dilma, o mais recente conspira contra Pimentel.

Uma disputa jurídica entre um grupo de empreiteiras que realiza obras de urbanização de favelas em Belo Horizonte e a prefeitura da capital mineira provocou o afastamento político de Pimentel de seu sucessor, o prefeito Marcio Lacerda (PSB). Lacerda vem se recusando sistematicamente a assinar novos aditamentos contratuais para aumentar o valor de pagamentos por obras de construção de apartamentos para moradores de baixa renda. Segundo aliados do PSB, Lacerda afirma que os valores licitados já superam os preços praticados no mercado. Todas as obras são pagas com recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), coordenado no governo por Dilma.

Lacerda e Pimentel são, em tese, aliados. Novato na política, Lacerda é do PSB, partido aliado do PT em escala nacional. Sua eleição é um caso raríssimo. Pimentel e o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, promoveram uma incomum aliança entre PT e PSDB para eleger Lacerda para a prefeitura. Antes disso, Lacerda foi secretário-executivo de Ciro Gomes no Ministério da Integração Nacional. Hoje, Ciro é o incômodo aliado do PT. Ele se recusa a aceitar o apelo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de desistir de concorrer contra a amiga de Pimentel, Dilma Rousseff, na disputa da Presidência da República. Em troca, Lula e o PT oferecem apoio a Ciro na disputa pelo governo de São Paulo – uma eleição difícil para Ciro por causa do favoritismo dos tucanos. Nas últimas semanas, o aliado adversário Ciro fez vários ataques ao PT. Disse que o partido tem “moral frouxa” e afirmou ter mais chances que Dilma de se eleger para o Palácio do Planalto por ter disputado outras eleições. O embate travado entre o PT e o PSB por causa dos preços das obras em Belo Horizonte aumenta a tensão política entre petistas e socialistas.

“Perdi um filho e um homem justo”

A cubana Reina Luisa Tamayo estava sentada numa sala de espera do Hospital Hermanos Ameijeiras, pouco antes das 13 horas do dia 23, quando um médico veio lhe dizer que, enfim, poderia entrar no quarto de Orlando Zapata Tamayo. “Vi meu filho já agonizando, se debatendo, inconsciente. Eram os últimos momentos”, disse Reina a ÉPOCA. Ela saiu por alguns minutos. Quando voltou, o corpo do filho já estava coberto, com os aparelhos desligados. “Eu o descobri e acariciei seu rosto em despedida. Tinha acabado de perder não só um de meus cinco filhos, mas também um homem justo.”

Esse foi o fim da greve de fome de Orlando Zapata, um pedreiro e encanador de 42 anos que lutava contra o regime castrista em Cuba. Em 3 de dezembro do ano passado, ele decidiu parar de se alimentar como forma de protestar contra as más condições de tratamento na prisão em que estava, na cidade de Camagüey. Acusado pelo governo de “desacato”, “desobediência” e “desordem pública”, estava preso desde 2003. Mesmo recebendo alimentação intravenosa à revelia, seu estado de saúde foi piorando, até que as autoridades tiveram de transferi-lo para um hospital de prisioneiros em Havana. Em caráter de emergência, Zapata foi conduzido para o mais bem equipado Hermanos Ameijeiras. Não foi o suficiente para salvá-lo após 83 dias de protesto. Para a mãe dele, o culpado pela morte é um só. “Foi um assassinato premeditado. O regime foi matando meu filho aos poucos.”

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