Capital planejada e tida como uma síntese do país, Brasília chega hoje aos 50 anos imersa na maior crise política e urbana de sua curta história. Com um governador cassado recém-libertado da prisão, um quinto da população morando em áreas irregulares, o lago que a serve assoreando e a maior desigualdade de renda do país, os brasilienses se questionam se há mesmo o que comemorar.

A cidade vive um paradoxo: os problemas se colocam ao lado de virtudes como a qualidade de vida superior à média das metrópoles, as áreas verdes e a arquitetura única. Acabou erodida pelos escândalos locais e importados, que lhe imputaram a pecha de antro de corrupção. “O carioca é malandro; o baiano, preguiçoso; e o brasiliense, corrupto”, diz Nicolas Behr, poeta radicado na cidade há 35 anos, citando preconceitos regionais correntes.

Acervo UH -21.abr.1960/Folha Imagem
Aviões da esquadrilha da fumaça, da FAB (Força Aérea Brasileira), fizeram show aéreo na inauguração de Brasília
Aviões da esquadrilha da fumaça, da FAB (Força Aérea Brasileira), fizeram show aéreo na inauguração de Brasília

Behr é o autor das camisetas que circulam pela cidade com os dizeres: “Sou de Brasília, mas juro que sou inocente”. A estampa surgiu após o mais recente escândalo, o chamado mensalão do DEM, que derrubou toda a cúpula do governo local e colocou a cidade sob risco de intervenção federal.

Em imagens divulgadas na televisão e na internet, deputados distritais da base aliada foram pegos recebendo o que, segundo investigação da Polícia Federal, seria propina para que as votações na Câmara Legislativa corressem como queria o governo. Pego recebendo dinheiro e orientando a distribuição dele, o governador José Roberto Arruda ficou dois meses preso e acabou cassado.

“A sociedade brasiliense, trabalhadora, é a luz no fim do túnel”, defende o maestro Rênio Quintas, um dos coordenadores da festa independente, “Brasília, outros 50”, que ocorre desde ontem na cidade.

Um dos projetos que teria sido aprovado sob a influência do mensalão, segundo o denunciante do esquema, é o que chancelou o Plano Diretor de Ordenamento Territorial, questionado pelo Ministério Público. Segundo Cássio Taniguchi, ex-secretário de desenvolvimento urbano do DF e um dos responsáveis pelo plano, o projeto só aumenta a densidade em uma região e cria novas áreas de preservação. A situação, porém, continua longe da desejável, diz ele: 500 mil pessoas vivendo em terras irregulares, concentração de empregos no centro, transporte precário e falta de planejamento.

O ex-secretário apresenta um dado que mostra a dependência das cidades-satélite do Plano Piloto, única região tombada como patrimônio da humanidade: enquanto 70% dos empregos estão concentrados no Plano Piloto, 80% da população habita fora dele, o que gera um movimento pendular “maluco”, afirma Taniguchi.

A necessária movimentação para o centro, aliada a um transporte público que deixa a desejar, colabora para aumentar o fluxo de veículos. Apesar de a frota brasiliense ter tido crescimento levemente inferior à média nacional de 1987 a 2009, o Distrito Federal já tem hoje a 12ª maior frota entre os Estados, mas seu território corresponde a 26% da área do menor Estado do país –Sergipe.

Disparidade

A relação Plano Piloto-satélites também mostra grande disparidade econômica. Embora o o DF tenha a maior renda per capita do país e Índice de Desenvolvimento Humano de país ultracivilizado, tem também o maior índice de Gini (ou seja, a maior desigualdade na distribuição da renda do Brasil), segundo a Pnad de 2008.

A média salarial do Lago Sul (bairro mais nobre) era de 43,4 salários mínimos, contra 1,6 em Itapoã e 2,8 no Varjão (áreas em que pelo menos parte da ocupação é irregular), em 2004.

Tamanha desigualdade gera apreensão dos brasilienses quanto ao crescimento da violência, como ondas de sequestros relâmpagos recentes.

Dados da Polícia Civil, dos últimos dois anos e meio, apontam o crescimento da apreensão de maconha e sobretudo de crack (4,3 kg em 2008 e 11,9 kg em 2009) e a redução da quantidade de cocaína apreendida.
Por que Brasília, planejada pelo urbanista Lucio Costa para evitar “uma indevida e indesejável estratificação”, chega ao cinquentenário desta forma?

Segundo especialistas, pela falta de preocupação com o crescimento. “A base do problema é a falta de planejamento regional”, diz Alfredo Gastal, superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no DF. Para Frederico Flósculo, professor de arquitetura da Universidade de Brasília, “o principal problema é o Plano Piloto ter sido visto como um objeto; ele deveria ter sido um guia para o crescimento que viesse a seguir. Brasília é um improviso só”.

Faltou preservar a área próxima do Plano Piloto, que influi diretamente na região tombada, diz Maria Elisa Costa, filha do urbanista: “A grande ameaça é que a especulação imobiliária cerque a área tombada com uma paliçada de torres de 20, 30 andares, isolando Brasília dos 360º de horizonte do planalto, quando a relação da cidade com sua paisagem natural faz parte da partitura original”.

Folha

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