“A política é uma delicada teia de aranha em que lutam inúmeras moscas mutiladas.” A frase do escritor francês Alfred de Musset (1810-1857) traduz a batalha na Câmara em torno do projeto que instituiu a ficha limpa (que impede a candidatura de condenados por órgãos colegiados). Se a Justiça é uma teia, muitos são os parlamentares hoje enredados nela. Mas poucos os que têm coragem de claramente contrariar uma proposta – em pleno ano eleitoral – que moraliza o processo eleitoral e conta com mais de 1,6 milhão de assinaturas de apoio.

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Dentre os deputados que abertamente não apoiam a proposta estão: Fernando Chiarelli (PDT-SP), José Genoino (PT-SP), Leonardo Picciani (PMDB-RJ) e Silvio Costa (PTB-PE). Por sua vez, os deputados Nazareno Fonetelles (PT-PI) e Paulo Maluf (PP-SP) são apontados por entidades que defendem a ficha limpa como contrários ao projeto. 

Em sessão extraordinária na quarta-feira (7), Silvio Costa citou a música “Palco” de Gilberto Gil para reforçar que, apesar de não ter nenhuma pendência judicial, é contra a ficha limpa.

“Bumbum de bebê” 

“Tem uma música que diz assim: ‘Subo neste palco, minha alma cheira a talco com bumbum de bebê’. Quero deixar bem claro que não tenho nenhum tipo de problema em tribunal de contas, no TCU, no Ministério Público Estadual, no Ministério Público Federal. No Supremo, eu sou limpinho feito bumbum de bebê. Portanto, eu sou um ficha limpa”, afirmou.

Em referência às assinaturas colhidas na população para que a proposta fosse votada, ele também foi irônico: “Se um grupo de brasileiros começar a recolher assinaturas para fechar esta Casa, não consegue só 1,5 milhão não. Consegue 10 milhões de assinaturas querendo fechar a Casa. Eu não tenho dúvida”. E complementou criticando o fato de, pelo projeto, qualquer prefeito condenado por tribunal de contas ter de recorrer ao Poder Judiciário para se candidatar.

“Manual de inconstitucionalidade”

Para Leonardo Picciani, a proposta da ficha limpa é um “manual de inconstitucionalidade”. Em sua análise, ele desrespeita direitos fundamentais previstos na Constituição, como a garantia a plenos direitos políticos até sentença condenatória transitada em julgado; além do direito à ampla defesa e ao contraditório.  

Picciani aproveitou para alfinetar a Justiça, que recentemente criticou a lentidão do Congresso para decidir sobre determinadas matérias, como a fidelidade partidária: “Essa questão está nas mãos do Judiciário. Sejam mais céleres nos julgamentos. Absolvam os inocentes e condenem, em última instância, aqueles que forem culpados. E aí está solucionada a questão”.

Genoino

Um dos mais notórios críticos da ficha limpa é o deputado Genoino, que vem bombardeando a proposta desde que ela foi apresentada ao Congresso, em setembro do ano passado.

Na mesma sessão extraordinária da quarta passada, o petista (réu do processo do mensalão no Supremo Tribunal Federal) destacou que foi aconselhado por amigos a não se pronunciar sobre o tema, mas que o fazia por dever de consciência.

“Quando se tenta substituir para os tribunais a solução da crise da política, é o suicídio da política e da democracia. O princípio de que o poder emana do voto é um princípio sagrado. E é o eleitor que tem de escolher. Quem faz a limpeza, quem faz a escolha, são os eleitores. Quem faz a escolha é exatamente o eleitor. O povo não precisa de tutor. Quem quer tratorar o povo é porque, no fundo, desconfia que o povo não é maduro para escolher”, afirmou Genoino na tribuna da Câmara.

Essa não foi a primeira manifestação de Genoino contra a matéria. Em novembro do ano passado, Genoino assinou um artigo no qual classifica o projeto da ficha limpa de “autoritária e conservador”. 

Em outra oportunidade, no dia 31 de março deste ano, o petista elencou duas razões para manifestar sua oposição à proposta. “Tenho me manifestado radicalmente contra ele [o projeto]. Primeiro, porque fere um princípio fundamental do direito constitucional, a presunção de inocência e culpa só com sentença transitada em julgado. Isso está no artigo 5º da Constituição. Segundo, porque é uma lei excepcional para cassar direitos políticos. Não se cassa direitos políticos com uma lei excepcional.”

Cautelosos

A matéria deveria ter sido votada na quarta-feira, mas uma manobra conduzida pelos líderes do PT, PMDB, PP, PCdoB e PR remeteu o projeto de volta à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara

Segundo o vice-líder do PR, Lincoln Portela (MG), alguns partidos não assinaram o requerimento de urgência para melhor discutir a matéria. O substitutivo apresentado, no entanto, já havia passado por um grupo de trabalho composto por representantes de todos os partidos.

“Nossa preocupação é que essa lei é tão importante, que pensamos que esse projeto não pode ser votado inadequadamente, de maneira atabalhoada. Não podemos votar uma matéria desse tipo sem passar na CCJ. O PR já propôs três emendas sobre a tipificação das penas. Queremos discuti-las”, disse Lincoln.

Postura de cautela também diz ter adotado o deputado Nazareno Fonteles (PT-PI). Apontados por entidades como contrário à matéria, Nazareno diz que “pessoalmente” não tem nada contra o projeto, mas que faz ponderações em torno da proposta por causa do “que tem escutado nos corredores do Congresso”.

“Se fosse para votar, eu votaria a favor. Mas eu fui mais prudente para tentar construir um projeto mais seguro. A gente tem que ver que as instâncias estaduais da Justiça são muito reféns de interesses locais. Muitos deputados conhecem a força da influência dos estados e se sentem reféns disso”, disse Fonteles.

Para o deputado petista, o projeto ficha limpa é “café pequeno” diante da moralidade necessária na política brasileira. Fonteles afirma que o país precisa de uma reforma política, com aprovação do financiamento público exclusivo de campanha. A bandeira dessa reforma política, aliás, amplamente defendida no Congresso. Mas, assim como o projeto ficha limpa, a proposta é silenciosamente embargada na Câmara.

“Tem gente lá na Câmara que está contra o ficha limpa, mas não quer dizer que está contra para não se expor, nem se desgastar com a opinião pública. E na hora de votar, alguns desses podem inclusive votar a favor, porque não querem sofrer desgastes com a pressão popular. Isso acontece”, disse Fonteles. “Mas a gente sabe que você pode derrotar uma matéria votando contra, mas também com ausência e assim não tem como dizer se o deputado é favorável ou contra, porque cada um tem sua agenda para justificar a falta”, declarou.
  
Na quarta-feira passada, após reunião na Presidência da Câmara, o líder do PT, Fernando Ferro (PT), adiantou que apresentará emenda no sentido de permitir que o candidato condenado em segunda instância possa recorrer e se candidatar. Pela proposta atual, qualquer candidato condenado por órgão colegiado está inelegível. Para o petista, os tribunais regionais eleitorais são marcados “por uma história de prevalência do ambiente político”.

De autoria do líder do DEM na Câmara, Paulo Bornhausen (SC), o requerimento de urgência para a apreciação da proposta em plenário contou com a adesão dos seguintes partidos: PSDB, PPS, Psol, PV, PHS, PSC e PDT.

Pela ficha limpa

Do outro lado estão os deputados que defendem a ficha limpa.  Para Flávio Dino (PCdoB-MA), ex-juiz de direito e referência no Congresso em assuntos jurídicos, o texto constitucional prevê uma lei complementar que poderá fixar hipótese de inelegibilidade, em função da vida pregressa dos postulantes a cargo eletivo, para proteger a probidade e moralidade. 

“Eu acho que quem comete um homicídio, é processado criminalmente por ele, se defende, há provas produzidas, ele é condenado em primeira instância, há recurso, ele é condenado novamente por um órgão colegiado; acho que essa pessoa não tem boa vida pregressa. Respeito quem pensa em sentido contrário”, explicou. 

De acordo com o deputado maranhense, não serão inelegíveis os que forem condenados por infrações penais de menor potencial ofensivos (cuja pena máxima não ultrapasse dois anos).

“Fatos corriqueiros, que podem acontecer com qualquer pessoa, não gerarão inelegibilidade. Apenas crimes graves: corrupção, tráfico, crimes contra a moralidade, contra o patrimônio público, crimes contra o erário, tráfico de entorpecentes, estupro, homicídio. São esses crimes que nós estamos tratando, e acho que diante deles nós devemos considerar que é razoável dizer que essas pessoas não têm boa vida pregressa e, por isso, devem ficar inelegíveis. Essa é a razão pela qual, com muita convicção, defendo a constitucionalidade do projeto”.

Outro defensor da ficha limpa, o deputado Chico Alencar (Psol-RJ) criticou a falta de seleção dos candidatos pelos partidos políticos. “Tendo grana e tendo curral eleitoral, é candidato”, disparou.

“Para se exercer, por concurso, uma função pública, há critérios também. Ora, o direito de se candidatar não é absoluto. O direito de postular uma representação popular exige pré-requisitos sim.”

O deputado fluminense reforçou a previsão da lei complementar da inelegibilidade, “que será feita levando em conta a probidade na função pública, a moralidade no exercício do mandato, a vida pregressa do postulante, e, claro, o bom exercício da função pública. É tão somente isso que se quer”, afirmou Chico, lembrando que a imunidade parlamentar não pode virar impunidade criminal.

Líder da minoria, Gustavo Fruet (PSDB-PR) criticou o adiamento da votação e defendeu a proposta. Contudo, ele destacou ser uma “ilusão” achar que a política é um espaço preenchido apenas por pessoas comprometidas pelo interesse público. “Na política, nós não vamos ter só freiras, pastores e escoteiros. Nós vamos ter o que tem de melhor na representação da sociedade, e o que tem de pior também”. 

“Este projeto não é da oposição, não é do governo. Este projeto pode ser, se bem construído, um projeto a favor do país”, afirmou.
 
Para o deputado Índio da Costa (DEM-RJ), relator da matéria, a pressão popular até a sanção presidencial é a “única forma” capaz de garantir a obrigatoriedade da ficha limpa.

Pressão popular

O adiamento da votação do projeto ficha limpa deixou representantes do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) em alerta. O coordenador do movimento, juiz Marlon Reis, afirma que a sociedade civil não vai recuar e pretende intensificar as pressões. Segundo o juiz, de olho no período eleitoral, o movimento irá expor os nomes dos parlamentares contrários à matéria e não vai aliviar para os faltosos da sessão em plenário de votação do ficha limpa, marcada para o início de maio.

“Faltar a essa sessão vai ser considerado votar contra. É muito fácil se criar uma estratégia de poucos irem votar. Com certeza, vamos aproveitar as eleições. O movimento tem uma capilaridade muito grande. A nossa ideia é fazer com que os nomes dos que votarem contra e os ausentes cheguem a cada cidade. Vamos divulgar a lista através das entidades que fazer parte do MCCE”, disse Marlon.
 
O juiz avalia que a estratégia de adiamento foi usada porque parlamentares contrários ao projeto querem ganhar mais tempo “por medo da pressão popular”. “O voto, por ser um projeto de lei complementar, tem que ser aberto, então vai se saber quem votou contra o ficha limpa”, disse. Considerando “frustrante” o adiamento, Marlon afirma que “a palavra de ordem agora é votação”. “Nós queremos que eles votem. A Câmara não pode se furtar de decidir sobre um projeto desses”.

Para o filósofo e teólogo Raimundo Caramuru, assessor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, os deputados querem ganhar mais tempo para desfigurar o projeto. Caramuru considera que o ficha limpa tem sido tratado pelos parlamentares como “um fantasma que amedronta” e pela opinião pública como um projeto que contribui “para elevar o nível ético e a força moral do Parlamento”.

“O projeto de lei ficha limpa tem apenas este objetivo óbvio. As manobras protelatórias que ameaçam atualmente o projeto de lei ‘Ficha Limpa’ não honram a dignidade do Congresso, pois constituem mais um desserviço prestado ao interesse público do País”, concluiu Caramuru.

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