Taeco Carignato
De São Paulo

 Os assassinatos do cartunista Glauco Vilas-Boas e de seu filho Raoni chocaram a nação, despertando polêmicas diversas, às vezes banais, sobre religião, drogas e esquizofrenia. Condena-se o Santo Daime pelo uso de chás alucinógenos em seus rituais, por admitir psicóticos entre os seus seguidores, pelos surtos psicóticos e comportamentos violentos de Carlos Eduardo Sundfeld Nunes (assassino confesso de Glauco e Raoni). Sem dúvida, não se pode deixar de associar a Igreja Maria do Céu à tragédia que ceifou a vida de seu fundador, mas fazer uma relação direta de causa e efeito entre o uso de alucinógenos pelos daimistas e o comportamento violento do jovem Carlos Eduardo é fazer uma análise superficial e rasteira. Pois não se leva em conta as circunstâncias e o longo caminho percorrido por Carlos Eduardo para chegar ao ato.


(foto: Futura Press/ Christian Rizzi/Gazeta do Povo)

 Em primeiro lugar, não é necessário que se administre um chá alucinógeno para que se desencadeiem surtos psicóticos. Ocorreram e ocorrem casos de surtos psicóticos em portadores de esquizofrenia e outras formas de transtornos mentais que são ou foram seguidoras de outras seitas religiosas, altamente respeitadas. Um rito, palavra ou atitude de um líder religioso… pode desencadear comportamentos violentos. Afinal, os papas João Paulo XX e Bento XVI também não foram vítimas de atentados? E todas as religiões possuem rituais.

O uso de psicoativos em rituais religiosos é tão antigo quanto a própria humanidade. Não somente em religiões animistas dos tempos primordiais e dos homens da natureza. Lembremos que Jesus Cristo em sua última ceia distribuiu pão e vinho aos seus discípulos. E nas bodas de Canaã, transformou água em vinho. Ou seja, os estimulantes também eram usados pelo Filho de Deus.

A questão é que esses atos de partilha e de transformação têm valores simbólicos. Os rituais são representações de aspectos das relações sociais organizadas em torno de fatos acontecidos, construídos ou imaginados. O pão e o vinho ganharam valores simbólicos nos ritos católicos. Não mais se distribui vinho aos fiéis e o pão transformou-se em hóstia. O problema dos seguidores do Santo Daime está na ausência de simbolização da bebida alucinógena. Se precisam de uma droga (concreta) para alcançar graus elevados de consciência (ou inconsciência) e de autoconhecimento é porque existem falhas em suas crenças. Afinal, os santos católicos (alguns especiais) chegavam à elevação mística sem uso de drogas.

Isso não significa que se deva proibir o uso da ayahuasca ou de qualquer outra substância psicoativa em ritos religiosos. O chá alucinógeno já está na cultura. Proibir o seu uso vai lançá-lo na clandestinidade. E o clandestino entra no imaginário popular como algo misterioso, atraente. Envolve o sujeito nas tentativas de superação da interdição. A questão, então, deve centrar em “por que usar” e “como usar” e não na proibição.

Sim, todas as religiões em seu início sofrem perseguições. Os primeiros cristãos foram lançados aos leões. O budismo, também perseguido, quase foi extinto em seu país de origem. Podemos pensar que o Santo Daime também seja vítima de discriminação e preconceito. Isso, porém, não deve impedir que os daimistas reflitam sobre os próprios atos. Não exatamente sobre o consumo do chá alucinógeno, mas de fazê-lo fora do contexto e da cultura em que tais rituais da floresta se desenvolveram. Transmigrá-los sem os devidos cuidados pode gerar fatos como o que aconteceu em Osasco.

Isso não significa que o Santo Daime deva se limitar às florestas. As religiões se expandem com a expansão política e econômica dos povos que a praticam. Os contatos entre as diferentes culturas e religiões geram o chamado sincretismo religioso. Mas a organização dos ritos não pode ser feita com leviandade. Se os valores simbólicos dos rituais não sustentam o sujeito na comunidade, ele surta ou parte ao ato (violento, na maior parte das vezes). A religião tem justamente a capacidade de estabilizar o sujeito em crise psicótica. Se a Igreja Céu de Maria causou efeito contrário – se é mesmo ela a responsável pelo desatino de Carlos Eduardo, pois são muitos os fatores que geraram a tragédia e o crime ainda não foi totalmente esclarecido – é que algo está errado na condução de suas crenças e rituais.

Isso não vale apenas ao Santo Daime. Qualquer rito fora do contexto pode trazer prejuízos. Se pensarmos nos ritos budistas de fusão da mente com a sabedoria dos seres iluminados, podemos pensar, que sem a devida consciência dos significados dos ensinamentos, tais ritos podem levar o sujeito pouco afeito ao contexto oriental às alucinações místicas. Acontece que para o monge budista ou para qualquer outro praticante ritualístico de qualquer religião, tais experiências têm um sentido específico. O que não aconteceu com Carlos Alberto. Ele partiu para o ato. A passagem ao ato. Pois não teve oportunidade para dar significações aos seus delírios. Nesse ponto, o Santo Daime falhou.

As alucinações e os delírios são meios de significação. A partir das interpretações ou da atribuição de sentidos – daí vem a psicanálise – o sujeito pode se relacionar com a realidade que mais desconhece: a realidade de si. Se de um lado, a psicanálise usa a ciência e a linguagem como atribuidoras de sentido, a religião – desde as animistas primitivas até as portadoras de teologias avançadas – é outra das grandes instituições atribuidoras de significações. Nesse sentido, o encontro com a religião pode estabilizar o psicótico.

Lacan criou o conceito de metáfora paterna ou “Nome-do-pai” que possibilita a significação da sexualidade, tirando-a do mundo animal. Não totalmente, pois o simbólico não abarca todo o real, permanecendo sempre um resto sem simbolização.É nesse resto não passível de simbolização que atuam as religiões. Então, a religião sempre vai existir. Pois está na própria constituição da humanidade.

Taeco Toma Carignato é psicóloga psicanalista e jornalista. Doutora em psicologia social (PUC-SP) e pós-doutora em psicologia clínica (USP), é pesquisadora do Laboratório Psicanálise e Sociedade (USP) e do Núcleo de Pesquisa: Violência e Sujeito (PUC-SP).

 

Terra

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